eu sou uma ideia.
as vezes me sinto mais ideia do que gente, mais pensamento do que ação, mais falatório do que sentimento.
vivo numa atividade mental tão incansável quanto imparável, tudo um pensamento, tudo uma reflexão, tudo uma fala descabida, nada é absurdo se tudo é possível. como se tudo pudesse ser medido, previsto e analisado, sublimado. tudo me cabe já que em tudo penso.
vi num filme uma vez, a vilã bem bonita pedindo para um ser supremo todo o conhecimento do mundo. no processo, ela explodiu. essa cena absurda me causou tanta admiração que supus que, mesmo não sendo capaz de suportar todo o conhecimento do mundo sem explodir, pelo menos era meu dever viver tentando e buscando e tomando o cuidado de estar atenta a tudo o que se pode descobrir. afinal, quem sabe? as vezes comigo dá certo e eu não explodo. já disse mais de uma vez, inclusive, com todas as palavras, como disse Cate Blanchett no final de Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, eu quero saber de tudo o que tem para saber. e sofri, é claro, como todos sofrem, quando descobri que na verdade nunca se sabe de tudo, e que tudo o que já foi dito não será ouvido por completo.
o que me lembra que aprendi recentemente que o som se propaga pela eternidade e nunca se dissipa, tudo o que foi dito ainda está sendo falado em algum nível pelos ares do mundo. tudo o que foi construído como conhecimento e pregado como boa nova ainda se espalha e se espalhará, tudo o que ainda será dito vai se unir ao som primordial de Haja Luz que fez tudo se iluminar lá no começo da história da humanidade. a palavra tem poder.
passei muitos anos da minha vida achando que ficaria louca - se tudo der certo, ainda dá tempo. há algo na loucura que sempre me coçou, parece que se trata da extrema sensibilidade com o mundo, o tornar-se (ou retornar-se) a forma primária que o ser humano deveria ter e se perdeu. que a gente tinha quando era criança. a intuição aguçada, o sofrimento escancarado e afinado com o mundo, a natureza e os passarinhos. vendo coisas e ouvindo o que foi propagado anos antes, pelos primeiros humanos da terra e os que vieram depois deles.
mas não sei. hoje tenho medo do oceano, medo de insetos, medo do que é feio. medo de explodir, de me perder e perder o que parece que é meu. sinto que a loucura e tudo o que vem junto - a poesia e a dor - está destinada apenas aos mais corajosos, apenas àqueles que assumem o risco de perder as linhas do corpo. enquanto eu disfarço, falo demais, penso demais, teorizo demais. e preciso, se não fico com a cabeça pegando fogo, preciso. e também não é como se não conseguisse não falar, não pensar e não criar teorias. nasci assim - como todo ser humano, curiosa e com essa sina de inventar qualquer coisa.
mas a loucura só atinge aqueles que conseguem ficar em silêncio.
com a loucura também a sintonia com o mundo.
para que se entenda: há na palavra um poder que conceitua e traduz; e também uma fraqueza que limita. quando digo algo só posso querer dizer aquela coisa e nada mais, pois da palavra nasce o conceito, portanto quando tento explicar algo grande, o encaixo dentro de palavras pequenas. pequenas pois se segue o padrão de uma época, explica-se rápido, em poucos segundos para não perder o interesse já que todos somos inteligentíssimos e falamos demais, pensamos demais e teorizamos tudo.
aquilo que é grande, o mundo, precisa caber em pequenas palavras (mundo), para que nos façamos entendidos.
heidegger, até onde eu sei, precisou inventar uma palavra uma vez. fico imaginando que ele olhou para as palavras que tinham disponíveis no dicionário e pensou: nada é suficiente. nada do que me tem disponível é suficiente para que caiba em si, na palavra, o conceito do modo de ser dos homens.
modo de ser dos homens é mais ou menos a tradução em português da palavra que ele inventou.
coitado. fico com pena dos filósofos, eles fazem de tudo para traduzir o que é ser humano, coçam o côco, inventam palavras, falam, pensam, teorizam mas não é suficiente.
correm o risco de se expressar e pensam: agora todos vão entender. e ninguém entende tudo por completo porque na palavra, nada é suficiente. nem se inventar.
heidegger por exemplo inventou usando conceitos da língua dele, da época dele, de onde ele viveu. eu daqui de niterói pouco entendo do que ele estava falando.
Mas inventar não é tudo o que fizemos até hoje?
inventamos histórias, de ninar, de dar medo e de ciência, para que as palavras se juntem umas com outras e assim, quem sabe, juntinhas uma do lado da outra, ganhem força e tamanho pra explicar aquilo que é tão grande. daí inventamos tudo e qualquer coisa, e o que resta? insuficiência. palavras são só esses tracinhos pretos na folha branca, como se explica uma cor? como se explica um som? como se explica a vida sem usar todos os sons que se propagam fora da minha janela, o passarinho do vizinho, a banda da rua, a geladeira velha aqui dentro de casa que de vez em quando grita? não há nenhuma palavra que eu possa inventar que te traduza o que é ser essa patrícia que está sentada escrevendo nesse papel. é o meu modo de ser. e de mim, que sou tão pequena. imagina o de todos.
mas eu, que sou teimosa, faço de tudo, tento o tempo todo. invento palavras, pinto quadro, faço teoria, falo e penso e nada. nada é o suficiente.
presto atenção na composição da frase. nada é. nada é suficiente. sempre me encantou esse tipo de negativa, que não nega nada. ninguém é de ferro, penso no Ninguém e em como ele faz para se locomover com as pernas feitas de metal e não de carne como a minha. depois fico rindo quando lembro que, assim como é de ferro, Ninguém é perfeito.
já o Nada, se eu estiver certa (o que eu duvido), é suficiente. e então deve ser por isso que ainda não enlouqueci, e com a loucura a poesia. por que não vivo quieta. nunca consegui. não calo a boca, não presto atenção. tenho algo a dizer sobre tudo, tenho opinião demais, quero conhecer todas as coisas e nesse processo tirar tudo do silêncio e propagar pela eternidade, nessa sina e ânsia que o ser humano tem desde que aprendeu a falar. explorar tudo, matar tudo, fazendo de tudo para encaixar o que é grande no pequeno. e consegue.
nada é suficiente e faz sentido, se vive em silêncio. beijo em silêncio, como em silêncio, durmo em silêncio. nasço chorando - mas chorar não é palavra - aprendo a falar depois. e quando morrer, nunca mais vou dizer nada. finalmente.
parece que de tanto esforço, consegui o que queria, o poder de desvendar os mistérios do planeta. que é isso, né, como fazem os físicos e os filósofos, observar tudo e inventar uma história depois. meu amigo do lado, em seguida, observa o que inventei e inventa uma história sobre a minha, julgando o certo do errado. e eu faço o mesmo e o mesmo depois.
o problema é que tudo o que foi dito ainda está sendo dito, e o não-dito ninguém escuta. claro, Ninguém é perfeito, só por isso que ele já percebeu que é possível se escutar o não-dito, o silêncio e o nada. o modo de ser de todos os homens e mulheres está no não-dito e no poder do não-dizer, no espaço entre as palavras, nas ações entre os pensamentos.
por isso que a poesia é tão perigosa, ela inverte os espaços. poderosa¹. vira palavra todo silêncio, que é aquilo da vida. vira palavra aquela coceira sarnenta e enjoada que é querer e gostar de viver. e viver sabendo que o Nada se explica. se explica em si mesmo, dentro desse tamaninho de palavra.
eu, sinceramente, acho as vezes que sou só uma ideia, de tanto que abstraio até o pipipiu da sabiá do meu vizinho. vivo pensando, esqueço de viver aí depois lembro que viver também é nada, também é o ato silencioso de esquecer. parece que alguém me inventou e me cuspiu aqui pra preencher os espaços entre as palavras. respondo um monte perguntas, as faço em dobro
O que é isso que é da vida?
Como é o modo de ser dos homens?
O que é isso que se diz mas não se ouve?
Qual a tradução do canto do sabiá?
O que é isso que Ninguém me explica?
porque não tem jeito. eu queria saber de tudo.
¹ a primeira vez que escrevi, era só “por isso a poesia é tão poderosa”, mas quando fui ler pela primeira vez em voz alta eu errei e acabei falando “perigosa”, mais tarde honrei meu ato falho e o coloquei no texto.